Primônio não é museua: o gesto de Francisco e a vida nas obras da fé
O gesto mínimo do Papa Francisco diante do seu futuro túmulo na
Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, traz consigo uma mensagem
silenciosa, mas poderosa: o patrimônio não é um museu. Não existe para
ser olhado de longe, nem para ser congelado em um instante passado.
Existe para acolher a vida — para ser respirado, vivido, atravessado
pelos homens e suas histórias.
Ao escolher intervir de maneira quase imperceptível — apenas um ramo,
depositado com humildade —, Francisco recusa a monumentalização vazia.
Em vez disso, inscreve seu tempo em diálogo com a longa travessia da
basílica, construída no século V e transformada, século após século,
sem jamais perder sua essência. Santa Maria Maggiore é feita de
mosaicos bizantinos, adaptações medievais, capelas renascentistas e
altares barrocos: múltipla como a própria vida. Sua verdade não está
na pureza de um tempo isolado, mas na continuidade de muitas vidas que
ali se entrelaçam.
Esse entendimento profundo é tradição no Vaticano. Desde a criação da
Real Fábrica de São Pedro, no século XVI, para cuidar da Basílica de
São Pedro, entende-se que conservar um espaço de fé não é mantê-lo
imóvel, mas garantir que ele permaneça lugar de encontro entre o
humano e o divino. A própria Congregação para os Bens Culturais da
Igreja reforçou, ao longo do século XX, que 80% do patrimônio
artístico do Ocidente é composto de igrejas, mosteiros, conventos,
obras nascidas da fé. E todas essas obras só têm sentido enquanto
abrigarem a vida, a oração, a esperança dos homens.
Em sua Teoria da Restauração, Cesare Brandi nos lembra que restaurar é
“restituir a unidade potencial da obra” — não apagando o tempo, mas
reconhecendo-o. Giovanni Carbonara amplia essa visão, afirmando que o
patrimônio precisa ser preservado como testemunho em transformação:
aberto às gerações, e não trancado em vitrine. Do mesmo modo, na
tradição espanhola, pensadores como Luis Monreal defendem que a
intervenção crítica é a que respeita as camadas do tempo e a vivência
do presente.
Não se trata, portanto, de recusar a conservação. Mas de recusar a
morte simbólica do patrimônio. Um bem cultural que se torna apenas
objeto de contemplação, separado da vida, torna-se como um corpo sem
alma: preservado, mas inerte. O restauro da Capela Sistina, que
libertou a força viva de Michelangelo sem lhe impor leituras novas, é
outro exemplo de que conservar é permitir que a obra continue a falar
— não a silenciar em nome de um ideal de pureza impossível.
Minas Gerais, com suas igrejas, praças e cidades barrocas, é herdeira
desse desafio. Ouro Preto, Congonhas, Sabará, Mariana: seus
patrimônios existem para serem vividos, celebrados, renovados. A fé, a
arte e a história que construíram nossos espaços são dinâmicas, e
continuarão a sê-lo enquanto houver homens e mulheres que neles rezam,
trabalham, celebram, vivem.
O gesto de Francisco em Santa Maria Maggiore nos convoca a lembrar que
o patrimônio não existe para ser admirado como uma peça morta. Existe
para continuar sendo chão de encontros. Para ser lugar onde a história
humana e o mistério da fé continuam a se entrelaçar.
O patrimônio não é museu. O patrimônio é a memória da vida que pulsa,
sofre, canta e espera.
É nossa responsabilidade não apenas preservá-lo, mas mantê-lo vivo.
Leônidas Oliveira
Secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais
Arquiteto e Restaurador